segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Perdas

Não gostaria de transformar esse blog numa sessão "obituário"... Mas a morte é capaz de frear a correria do cotidiano e impor-nos à reflexão. Reflexão particularíssima, no sentido mais estrito: até onde vai nossa estrada? Os últimos dias não vêm sendo fáceis... Joaquín foi uma perda irreparável. Uma pessoa jovem e cheia de vida... É duro pensar que estamos privados de revê-lo, quem sabe por “algumas décadas”, como referiu o Timm. O que vem depois é mistério... Aliás, a vida da gente –já - é mistério, como diz a letra do belo samba “alento”: “A vida da gente é mistério / A estrada do tempo é segredo / O sonho perdido é espelho / O alento de tudo é canção / O fio do enredo é mentira / A história do mundo é brinquedo / O verso do samba é conselho/ E tudo o que eu disse é ilusão” (Paulo César Pinheiro).

Esses dias comprei na livraria da Lumen a obra “Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais”; foi uma grata surpresa encontrar um texto do Joaquín nas prateleiras, ainda, em português. Aliás, em 2009, a obra de Herrera Flores ganhou maior publicidade no Brasil. Refiro-me à publicidade editorial (além dos anuários de direitos humanos, organizados em parceria com Salo e David Sánchez Rubio, Lumen Juris), já que o autor tinha um trânsito imenso pelas universidades brasileiras. Nesse mesmo ano, Joaquín lançou “A (re)invenção dos direitos humanos”, pela Fundação Boiteux (Florianópolis) e Instituto de Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento.

Vale trazer as próprias palavras do autor: “É necessário agradecer à Editora Lumen Juris por sua valentia em publicar um texto cujo título é ‘Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os Direitos Humanos como Produtos Culturais’. Afirmamos essa ‘valentia’ por apoiar uma reflexão crítica que 1º) visibilize os problemas que apresentam as teorias tradicionais dos direitos; 2º) desestabilize crenças estabelecidas e, em muitas ocasiões, coisificadas dos direitos, afastando-se de toda pretensão de essencialismo e/ou jusnaturalismo); e 3º) porque entre seus objetivos finais está o de transformação das relações sociais que, como afirma o artigo 28 da própria Declaração Universal de 1948, é um requisito necessário para exercer com um mínimo de eficácia os direitos nela reconhecidos. (...) em nossa Teoria Crítica, se abordará de um modo extenso a complexidade ‘cultural e conceitual’ dos direitos humanos. Como qualquer outra produção cultural os direitos humanos têm uma origem histórica resultante do processo cultural de reação que os seres humanos colocam em funcionamento em suas constantes relações com outros seres humanos, com a natureza e com eles mesmos. Nada nem ninguém pode negar que durante os milhares de anos nos quais a humanidade vem tentando humanizar-se têm ocorrido constantes lutas pela afirmação de sua dignidade. Mas o que caracteriza os direitos humanos é serem ‘uma’ entre essa grande quantidade de lutas que o ocidente propôs quando se encontrou, a partir dos séculos XV e XVI, com outros povos tão ou mais avançados do que aquilo que se considerava civilização. O fato do termo “cultural” direitos humanos alcançar legitimidade global tem muitas razões que no livro se pretende desenvolver. É nesse sentido que se propõe uma definição dos direitos humanos que não seja etnocêntrica (e muito menos eurocêntrica). Definimos os direitos, pois, como a colocação em prática de processos (sociais , econômicos, políticos, normativos) que abram ou consolidem espaços de luta pela dignidade. Não foi essa a tarefa que se propuseram Sófocles com sua Antígona, Shakespeare com Rei Lear, Erasmo de Rótterdam com seu Elogio à loucura ou, para colocar um ponto final, Mário de Andrade com Macunaíma?”.

Como bem disse o Wunder, ‘Joaquin era o cara’. Detalhe que o título original da obra é "Los derechos humanos como productos culturales: crítica del humanismo abstrato"... Crítica do humanismo abstrato... Aliás, a abertura já se dá colocando o dedo na ferida, citando o lutador/escritor anti-colonial Franz Fanon ["se é em nome da inteligência e da filosofia que proclamamos a igualdade dos homens, é também em seu nome que decidimos exterminá-los... Abandonemos essa Europa que não para de falar no homem, ao mesmo tempo que o massacra onde quer que o encontre, em todos os cantos de suas ruas limpas, em todos os cantos do mundo"]... Assevera Joaquín: "(...) Toda a análise e toda prática de direitos humanos que ignorem ou ocultem essas realidades não só constituem defeitos teóricos mas também, quando menos um apoio indireto a todas as violações que ditos direitos sofrem. Não podemos ser indiferentes ao horror. Como também não devemos abandonar a luta por conseguir maiores cotas de dignidade para todas e para todos. Aqui reside a complexidade dos direitos que nossa Teoria Crítica está empenhada em expor analisando os fundamentos filosóficos, conceituais e políticos que, quiçá inconscientemente, parecem sustentar toda essa cegueira diante dos contextos de desigualdade, morte e indignidade".

Suas palavras, intenções, etc., continuarão ressoando em nossos ouvidos...

“(...) La vida continuará, lo queramos o no, después de nuestro paso por ella. Los bosques seguirán produciendo oxígeno y frutos. Los mares continuarán aportándonos lluvia y sal. La gente que amamos, seguirá amándonos, quizá aún más que cuando estábamos aquí con ellos. El árbol, la gota de agua, el sentimiento de amor estarán siempre ahí coloreando la vida con todos los colores del arco iris y con todas las miserias de nuestras necesidades. Nada es más alto o más pequeño. Todo es lo vivo, lo que perdura, lo que nos acoge y lo que nos recoge.” (Joaquín Herrera Flores).

Também perdemos Mercedes Sosa, ‘La Negra’... Por duas vezes perdi os shows dela em Poa... La Negra será como Gardel… “Cantando cada vez melhor”, como gostam de falar os portenhos... Dela restam estórias memoráveis, como a de reerguer Charly García – internado em uma clínica por causa das drogas – à base de sopas e cuidados especiais (e pessoais), a fim de realizarem juntos um disco contendo as músicas do primeiro. “Alta fidelidad” é um excelente disco... assim como toda obra dessa fantástica cantora...

Para encerrar, deixo aqui uma versão de “Sea”, poesia de Jorge Drexler, em gravação com participação especial de Mercedes Sosa [ http://www.youtube.com/watch?v=BmN6ofMW3zw ]... Essa letra, assim como os últimos versos de Joaquín refletem bastante sobre a vida, seu sentido e nossa participação em todo esse processo. Espero ainda ter “dos o ¾ de la carretera a frente” rsrs Já que a música fala em “Ya estoy en la mitad de esta carretera”... De todo modo, a música reflete muito bem o que se falou... o que penso, como encaro as coisas... Por hoje, é isso.

Ya estoy en la mitad de esta carretera, tantas encrucijadas quedan detrás… Ya está en el aire girando mi moneda y que sea lo que sea. Todos los altibajos de la marea, todos los sarampiones que ya pasé.. Yo llevo tu sonrisa como bandera y que sea lo que sea. Lo que tenga que ser, que sea y lo que no… por algo será. No creo en la eternidad de las peleas ni en las recetas de la felicidad. Cuando pasen recibo mis primaveras y la suerte este echada a descansar, yo miraré tu foto en mi billetera y que sea lo que sea. Y el que quiera creer que crea y el que no, su razón tendrá. Yo suelto mi canción en la ventolera y que la escuche quien la quiera escuchar. Ya esta en el aire girando mi moneda y que sea lo que sea…

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