sábado, 10 de outubro de 2009

O corpo líquido (Juremir Machado da Silva)

ANO 115 Nº 9 - PORTO ALEGRE, SEXTA-FEIRA, 9 DE OUTUBRO DE 2009

Fui convidado pelo doutor Sérgio Goldani, idealizador do projeto "Polemus", a participar da Semana Científica do Hospital de Clínicas. Falei sobre o "corpo na modernidade líquida". É estranho. A ideia de "modernidade líquida" foi inventada pelo pensador polonês, radicado na Inglaterra, Zygmunt Bauman. É dessas noções que pegam. O rótulo é bom. A lógica publicitária é simples: mal necessário ou bem supérfluo. Não acredito em "modernidade líquida". Toda época ou era é líquida. Tudo é fluxo. Sempre. Aposto mais em pós-modernidade ou hipermodernidade. Ou seja, em aceleração do fluxo.

Muita gente importante já escreveu sobre as nossas maneiras de encarar o corpo através da história. O filósofo francês Michel Foucault é referência nesse campo. Mas um livro incontornável, até para Foucault, é "O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes", de Norbert Elias. Um clássico. Um dos capítulos dessa obra magnífica tem um título sugestivo: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais". Sobre o século XVI, dois fragmentos, tirados da obra de Erasmo, o de Rotterdã, não o amigo do Roberto Carlos, mostram o quanto foi difícil domar nossos instintos e maneiras: "Antes de sentar-se, certifique-se de que seu assento não foi emporcalhado". E "não se toque por baixo das roupas com as mãos nuas". Tem gente que ainda não aprendeu. Sobre o século XXI, poderia ser: "Não coce o saco em público". Como se vê, o processo civilizador ainda não se completou. Avançamos um pouco.

Em 1530, era importante avisar que constituía uma indelicadeza cumprimentar alguém que estivesse "defecando ou urinando". Hoje, a indelicadeza é cumprimentar alguém sem ter lavado as mãos depois de defecar ou urinar. É o que eu mais vejo nos aeroportos. O cara vai ao banheiro, sai sem lavar as mãos e aperta generosamente as mãos dos amigos que vai encontrando. Em 1570, cabia alertar que não era educado se aliviar diante das portas e janelas dos outros, especialmente na frente de senhoras. Essa informação, pelo jeito, ainda não chegou às grandes cidades brasileiras. É incrível o que se vê de marmanjo fazendo xixi, de madrugada, na frente da casa de qualquer um. Na Cidade Baixa, parede é banheiro. Outro dia, teve um árbitro, em algum lugar do mundo, que se aliviou, sem sair do campo, diante das câmeras de TV. Parou no YouTube. Dominar o próprio corpo é um duro exercício.

No século XIII, uma advertência era líquida e certa: "Quando assoar o nariz ou tossir, vire-se de modo que nada caia em cima da mesa". Se tivéssemos evoluído ou seguido esse tipo de recomendação, talvez tivéssemos escapado da gripe suína, cujo nome nada tinha a ver com os porcos quadrúpedes, como se pensou, mas só com os bípedes. Um conselho de 1555 faz pensar muito: "Se divide a cama com outro homem, fique imóvel". Certamente não era um elogio da passividade. Os tempos mudaram. Mesmo? No século XV, era fundamental aprender o seguinte: "Lava as mãos quando te levantas e antes de todas as refeições" e "não reponhas em seu prato o que esteve em tua boca". Como dizia o Belchior, "ainda somos os mesmos...".

Um comentário:

Moysés Neto disse...

Artigo na defensiva do Juremir... enfrentando o pânico moral da RBS sobre indisciplina na escola.